Diário de Viagem: acampar no Pico Paraná, o topo da região sul do Brasil

Em 2017, a consultoria Macroplan elegeu Curitiba como a melhor capital brasileira para se viver. Pode até ser, mas se eu tivesse participado da pesquisa, eu com certeza teria dado uma marca ainda maior. Para ser mais preciso, uma marca de 1.877m. Que rufem os tambores… a melhor vista panorâmica também é paranaense: o Pico Paraná.

Do alto da mais alta montanha do sul do Brasil, vemos Curitiba, Morretes, Paranaguá e até um pedaço do litoral sul de São Paulo. E é claro, uma dezena de outros picos que compõem uma das áreas hoje mais protegidas da Serra do Mar. Mas para merecer essa beleza toda, o caminho não é fácil.

 

Preparativos: sapateado nas alturas

Até o cume, é preciso desviar de muitos galhos e avançar por algumas vias ferratas. Mas acima de tudo, minha maior preocupação acabou sendo a última que me passaria pela cabeça: o frio. Isso porque fui alertado diversas vezes pela Galega, guia da viagem, de que à noite, a barraca ficaria bem gelada. Logo a mim que nunca havia acampado. Mal roupa eu tinha, quanto mais uma mochila cargueira para carregar tudo isso.

“Nas altas horas da madrugada, não é difícil que a temperatura chegue aos -5ºC”. Ok, eu precisava me preparar… Peguei um fleece, um anorak e uma pluma de ganso emprestados daqui. Uma cargueira e um gorrinho dali. E um isolante térmico e um saco de dormir acolá. Basicamente, mobilizei a empresa inteira para poder deitar quentinho lá nas alturas. “Mas fica esperto, hein?! Não vai soltar pum lá dentro que eu quero meu saco cheirosinho de volta”, alerta brincando um dos meus "credores".

O que eu posso dizer é que cheirinho bom é o que mais tem no Pico Paraná. Principalmente quando a chuva dá as caras no dia anterior. Poucos são os cheiros melhores que o de mato molhado. É claro que esse fenômeno também traz problemas. A começar pelo caminho embarreado, que obriga aqueles com as piores botas a praticamente sapatear em altitude. E isso que eu tinha comprado uma meia chique que retinha a água do pé: a tal da cool max. Mas pior ainda são as nuvens que aparecem junto e insistem em tampar tudo à volta. E foi exatamente com esse cenário que enfrentamos nosso dia de subida.

 

Primeiro dia: dois tubos e a oferenda da montanha

Da portaria ao acampamento-base, o céu deu de fechar para a gente. Assim que estacionamos a van, encontramos um punhado de trilheiros se preparando para subir. Éramos em oito, e claramente os mais preparados. Quer dizer, provavelmente os mais preparados já estavam estrada acima, mas para os grupos de amigos que tentavam se esquentar em seus shorts e moletons, nossas cargueiras até assustavam.

Separamos barracas, comidas e equipamentos nas oito malas, e começamos a nos vestir. Com medo do tal frio, botei dry-fitfleece e anorak, tudo de uma vez. Achei que a pluma seria exagero, então guardei ela na mala. Foi sair da van, que todo mundo se espantou. “Tira esse anorak pra não atrair chuva, menino!”. Lá na frente, quando o chuvisco chegou, eu e o anorak (que não era meu) nos tornamos a chacota óbvia para o resto da viagem. “Já fica esperto que quando a gente chegar no cume, a gente vai te sacrificar pro sol voltar”.

Minha resposta foi sacar a câmera, e sair tirando foto de tudo que me viesse à telha. E tenho que admitir que a tarefa foi bem mais difícil do que pensava. Afinal, eu estava (1) subindo com (2) uma cargueira (3) em terreno molhado (4) e desviando de galhos praticamente durante todo o caminho. Tropecei lá e cá, mas logo me adaptei. No começo, as primeiras vistas ainda estavam abertas, mas quando as nuvens desceram tive que mirar para baixo.

E o que logo me chamou a atenção foram os dois tubos brancos amarrados na cargueira da moça que seguia na minha frente: os famosos shit tubes. Se você nunca ouviu falar deles, pense que tudo que entra precisa alguma hora sair, não é mesmo?! Só não no mato… Afinal, nem outros viajantes são obrigados a sentir seu cheirinho, nem os animais que vivem por lá. E você que é defensor da higiene, saiba que é tudo forrado por dentro com plástico e vedado por fora para os que estão atrás na fila indiana.

No entanto, eu preciso confessar que toda minha propriedade para falar disso é só fachada, porque meu intestino literalmente travou por dois dias. Acho que eu não preciso entrar em detalhes, mas se você acha que eu quebrei a promessa do pum, saiba que durante a noite, abri o saco, abri a barraca, só não abri o botão da calça. Vai entender nosso corpo… E olha que fomos bem servidos. Era um banquete atrás do outro. É, camarada, para você que se achava com seu miojinho quente, você nunca viajou com a Pisa Trekking. Só para dizer que eu acho que como melhor na montanha do que no meu dia-a-dia. Mas já volto nisso…

 

Noite de acampamento: muralha branca e brigadeiro seco

Pois bem, subi, subi, subi e as nuvens não davam trégua. Conclusão: chegamos ao acampamento base (que por sinal estava lotado) com o campo de visão todo encoberto. Nosso guia local (Jeferson) apontava para os picos supondo onde eles estariam. Mas na verdade dávamos de frente com uma muralha branca. O desânimo começava a tomar forma, mas a energia que compartilhávamos um com o outro recompunha o grupo.

Depois de montar a barraca que dividiria com Jeferson, saímos para encher as garrafinhas. Muito mais leves e ágeis, o guia me contou de sua vida no Paraná. De como saiu de casa a contragosto dos pais para viver sozinho numa fazenda isolada. Das vezes em que subiu essa mesma trilha e encontrou aventureiros totalmente nus. E das namoradas que levou para conhecer a Serra e, é claro, se apaixonar, no meio do caminho.

 

De fato, o Jeferson foi um parceirão. Principalmente quando batia aquela fome na calada da noite, e lá estava ele com uns pães de mel para dividir. Mas já que estamos falando de comida… guacamole, risoto, pizza, canja, tapioca, geleia e melão. Precisa de mais alguma coisa? Claro, um brigadeirinho enrolado, por que não?! Isso porque a ideia inicial era comer brigadeiro de colher, mas o tempo de serra congelou o doce, e a gente teve que improvisar com o que tinha… No caso, um pacotinho de Ovomaltine para enrolar as bolinhas.

Ficava até meio difícil de andar, quanto mais deitar. O estômago até deu umas boas roncadas, mas não teve conversa com o intestino. O jeito foi ficar contemplando as estrelas que quebravam a muralha branca. Isso, é claro, regado a quentão, vinho, cachaça e boas conversas. Nada em exagero, só o suficiente para quebrar o frio. Mas a verdade é que nesse dia ele passou longe de nós. Foi bom, não precisei nem de fleece, nem pluma de ganso. Bastou a malha que minha mãe tinha deixado na mala. E olha que o chuvisco tinha apertado. “Lembro uma vez que eu vim aqui com uma namorada e ficamos dois dias dentro da barraca esperando um dilúvio passar”, compartilha Jeferson. E assim fomos dormir rezando para que o deus da montanha abrisse o tempo amanhã. Se não quem iria rodar de oferenda era eu.

 

Manhã de sol: branco fulminante

“Acorda aí, Natan, se não cê vai perder o sol nascendo”. E assim, acordei de supetão. Nem no dia em que eu estava mais atrasado, eu me vesti tão rápido. Saquei a câmera, arrumei o saco de dormir, abri o zíper da barraca e… que azul vistoso! Que brisa refrescante! Que cheiro gostoso! Que montanhas ostentosas! Que… sol. Depois de seguir por um caminho, subi numa pedra que se destacava, e ao fundo, no tapetão de nuvens, a grande bola de fogo riscava os céus.

Olhava à volta, e os marmanjos ao meu lado pareciam crianças em êxtase. Ao longe, no topo do Pico Paraná, flashes de lanterna entregavam os viajantes mais arrojados. De alguma forma, senti no silêncio cúmplice uma ternura que só quem presencia um momento desses entende. Estranhos se ajudavam, riam, tiravam fotos um dos outros. Enquanto isso, o vermelho virava laranja, passava ao amarelo, e terminava num branco fulminante. Fulminou tanto que posso dizer que uma lágrima tímida me escorreu. Penso eu que, entretidos no fenômeno natural, ninguém se deu conta desse momento. Quem sabe, cada um deles também não estivesse imerso em seus próprios fenômenos pessoais, com suas gotas singulares.

Não sei dizer. Puxei a garrafa que havia enchido, renovei as águas, e partimos novamente para trilha…

 

Segundo dia: do céu ao pastel

Depois desse pequeno momento de catarse, pudemos seguir caminho com mochilas de ataque, bem mais leves. O terreno aqui já era bem diferente. Longe das poças de lama e grandes copas, a vegetação diminuía e as pedras dominavam. Junto delas, as vias ferratas: estacas de ferro presas na rocha para facilitar a escalada. Tenho que admitir que quem fixou essas rotas era provavelmente bem alto, porque o trecho pede uma esticadinha a mais para alcançar a próxima estaca. A mim, de pernas e braços longos, foi tranquilo, mas aos que tinham membros mais curtinhos, o exercício serviu de bom alongamento.

Hoje, com o dia mais aberto, (1) eu não precisava ser sacrificado; e (2) podíamos parar nos mirantes do caminho. Lindas vistas ofereciam mais de 50 tons de azul, e por isso a câmera trabalhou muito melhor. Passamos pelo segundo acampamento, e já víamos os donos dos flashes arrumando os equipamentos para descer a montanha. Quanto mais subíamos, menor era a vegetação, e mais forte ficava o vento. Nos agarramos bem às últimas pedras, e mais alguns passos depois, éramos os reis do Sul do Brasil.

Fiz todas as poses que pude, deixei meu visto no livro de assinaturas, contemplei as cidades, rios e montanhas à minha volta, e despenquei. Digo, deitei com os braços abertos na pedra dura do pico. E lá fiquei. Quando me dei conta, já estava com a cargueira de volta nas costas, e lá íamos nós pelo caminho de barro. E eu tenho que dar o braço a torcer: as meias cool max de fato deixaram meu pé sequinho.

Nós descíamos, o sol descia, e uma outra coisa importante também começava a descer: meu intestino. Sim, depois de conquistar a noite e os céus, ele finalmente dava às caras. Mas faltava tão pouco… logo mais, estaríamos de volta à portaria, com um pastel na mão, um banho na cabeça e um vaso à espera. Só precisava descer mais um pouquinho. Só mais um pouquinho mesmo. Quase lá. Um pouco só. Mas caramba, que pouco é esse que nunca chega. Como é que eu subi tudo isso? Ok, descer é sempre pior que subir. Os joelhos doem mais, as panturrilhas também. Mas não chegávamos…

Enquanto isso, encontrávamos trilhas de formiga, ouvíamos sons irreconhecíveis e flagrávamos a lua se firmando no céu. Tudo isso acompanhados das head lamps que iluminavam o caminho, e deixavam nossas mãos desimpedidas para se apoiar nos galhos. Aliás, é preciso dizer que se não estivéssemos em grupo, esses trechos seriam bastante medonhos. As raízes eram maiores que uma coxa, e a quantidade de musgos que as encobria deixaria no chinelo qualquer pelugem do Tony Ramos.

Viramos cá, dobramos lá e finalmente víamos as luzinhas da portaria. Nos últimos passos, já estávamos soltando as cargueiras. Calculei duas vezes cada passo, porque é nessa hora que acontece os acidentes. Quando estamos para chegar, é bem comum relaxarmos os músculos e tropeçarmos até na nossa sombra. Adiantei-me, em vão. Havia apenas um único banheiro, com cinco pessoas na fila da ducha. Tive que me contentar com dois pasteis de queijo. No desespero do intestino, tinha me esquecido que estava verde de fome.

“Acho que vamos ter que sacrificar você para liberar essa fila aí, hein?!”. Puxamos o grupo para um canto, e chegamos a conclusão de que se esperássemos todo mundo tomar banho, chegaríamos em São Paulo só no dia seguinte. Topamos então parar no primeiro posto de estrada e soltar as pernas por lá. Vou te dizer, eu achava que o mais difícil da viagem seria dormir na barraca. Quem sabe carregar os 18kg nas costas. Ou mesmo aguentar o frio da serra. Mas nunca, nunca mesmo, a vontade mais primal do ser humano. Felizmente dessa vez foi, e daí em diante, nem o sacolejo da van impediu que eu dormisse como nas nuvens.

Nas nuvens paranaenses…

 

por Natan Novelli Tu (natunovelli@gmail.com)

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