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Contos e Histórias dos 34 anos de Pisa Trekking

Em julho de 2021, a Pisa Trekking completa 34 anos de existência. Foram mais de três décadas de muitas aventuras, desafios, amizades, companheirismo e vivência na natureza. Para comemorar esse marco, Claudia Ribeiro, guia da Pisa há 25 anos e responsável pelos roteiros de Chile, Argentina e Antártica, compartilha algumas histórias marcantes que capturam a essência da vida ao ar livre. Confira a seguir!

"Começo" entre aspas

Nas primeiras viagens da Pisa, nossas barracas e equipamentos não eram adequados, mas era o que tínhamos no Brasil. Todos os equipamentos de montanha eram muito caros e nós fazíamos diversas adaptações, já que a importação era escassa e só conseguíamos equipamentos no exterior.

A Pisa, visando o maior conforto para os clientes, foi pioneira ao oferecer a caminhada do Circuito W Trekking em Torres del Paine, sem que eles tivessem que levar a própria barraca. Eu me lembro que sempre que eu guiava um grupo eu levava as barracas do Brasil e as trazia de volta. Em uma dessas viagens, aconteceu um fato que mudou muito a nossa perspectiva de operação.

Estávamos no acampamento Pehoe a caminho do Glaciar Grey, e descobrimos da pior forma que era o acampamento que mais ventava. As nossas barracas, trazidas do Brasil, eram barracas de praia, leves e com duas varetas cruzadas. Nessa noite tivemos uma tormenta de chuva e vento com mais de 90km/h.

Eu estava sozinha na minha barraca e o vento era tão forte que afundava as barracas em direção às nossas cabeças, e depois, resistindo ao movimento, as varetas chicoteavam em um movimento inverso, nos golpeando dentro das barracas. Acordei sendo golpeada por um desses movimentos. Eu literalmente estava sendo espancada pela barraca. 

Abri o zíper e chovia muito, não dava para sair da barraca e nem tinha para onde ir de tanta chuva. Gritei para os clientes sentarem no canto das barracas para segurar as varetas e impedir o rebote. Para eles funcionou, mas eu, que estava sozinha na barraca, continuava apanhando. Consegui proteger a cabeça com a mochila.

Por sorte, antes de dormir, eu tinha checado todos os specs e tinha amarrado o sobreteto nas árvores próximas, pois já havia previsão de chuva. O vento finalmente passou e amanheceu. O dia nasceu com um lindo arco-íris. Apesar de tudo, havia adorado a aventura. Até os guias locais disseram que nunca tinham visto uma tormenta como a do dia anterior.

Por sorte era a nossa última noite de acampamento, pois quando desmontamos as barracas, descobri que a maioria havia quebrado e rasgado, tivemos que jogar quase todas no lixo. 

Com essa e outras experiências, fomos nos especializando e mudando os nossos roteiros e equipamentos. Hoje, não levamos mais barracas do Brasil para a Patagônia, nossas barracas ficam na Patagônia e fazem parte do nosso equipamento local da viagem. Aprendemos que as barracas iglus são as indicadas para o local e são as que usamos hoje. Além disso, também o cliente não precisa levar saco de dormir se não tiver, pois dependendo do roteiro ele estará incluso ou poderá ser alugado localmente.

Durante tantos anos, fomos nos especializando através de experiências vividas, trocadas com outros profissionais e por consultorias. Na verdade, dia a dia, viagem a viagem, confesso que ainda continuamos a nos especializar para continuar levar nossos clientes com segurança e conforto aos lugares mais incríveis desse planeta em viagens únicas que tanto amamos.

Eu gostei tanto daquele lugar que me tornei guia e operadora da Pisa e me especializei na região procurando sempre oferecer aos viajantes o acolhimento daquela terra.

Os parques, hoje, possuem uma melhor infraestrutura como acampamentos com banheiro e ducha quente. E há também diversas opções de acomodações e trilhas para os turistas percorrerem, como hotéis desde simples até os luxuosos, hospedagem em domos, yurts, dentro e fora do parque.

Mas a Patagônia ainda continua linda e caprichosa, com suas montanhas como se tivessem sido desenhadas e seus lagos coloridos como se tivessem sido pintados.

Guiei, ao longo desses 25 anos, diversos grupos e todos sempre se deslumbram com aquele lugar que é considerado pelos aventureiros como o parque mais bonito do mundo. Ainda hoje, eu mesma ainda me encanto com esse lugar único no mundo como se fosse a primeira vez.

Companheiros de trilha 

Em 1998, no Vale Francês, em Torres del Paine, não havia refúgio e eu estava conduzindo um grupo pequeno. O guia local ficou no acampamento francês armando as barracas e eu conduzi o grupo até o mirante após o refúgio britânico.

No nosso acampamento, havia um outro grupo de japoneses muito organizados. Tão organizados que dava até raiva. As mulheres usavam macacões de uma cor só, eram pequenas e combinavam as luvas com os macacões e as viseiras. O grupo deles nos ultrapassou perto do platô antes do refúgio britânico, que é apenas uma referência já que ele não existia mais.

O grupo de japoneses estava entrando no platô, mas eu já tinha atolado ali com o grupo anterior e lembrava de um caminho alternativo subindo o barranco pelas raízes das árvores. Conduzi o meu grupo pelo caminho e chegamos na placa onde era o acampamento britânico. Como estávamos em fila indiana, fiz uma parada para contar e ver se ninguém tinha ficado para trás.

E qual não foi a minha surpresa quando vi o grupo de japoneses seguindo o nosso grupo? Pareciam coelhinhos coloridos no final da fila. Eles haviam abandonado o guia deles e nos seguido. Fiquei surpresa, mas entendi quando vi o guia deles chegar coberto de lama até os joelhos, e nós e o grupo de japoneses limpinhos.

O meu grupo me disse que eles ajudaram as senhoras a subir nas raízes e desde o platô estavam conosco. E eles não iam negar ajudar alguém da trilha.

O guia deles estava visivelmente aborrecido e envergonhado, deu uma bronca em japonês procurando manter a dignidade e seguiu com o grupo para o mirante. Os japoneses seguiram o guia e riram da travessura.

Nós também começamos a rir. Na volta ao acampamento, os japoneses nos saudaram, agradeceram e até cantaram para nós. 

Em uma trilha, eu sempre digo que o seu melhor companheiro é quem está próximo a você, pois os guias não estarão ao seu lado em todo os momentos da caminhada. Entendo a preocupação do guia dos japoneses e eu também teria ficado bem preocupada se o grupo me abandonasse. Mas, por outro lado, fiquei bem orgulhosa do meu grupo ter sido tão prestativo.

Foi um dia interessante, quando notamos que mesmo não falando o mesmo idioma, conseguimos nos entender perfeitamente. O idioma das trilhas é universal.

Dorminhoco

Estávamos guiando um grupo privado na Patagônia Argentina e o coordenador desse grupo era bem rígido quanto aos horários, e ele estabeleceu que o horário da nossa saída para o Parque Torres del Paine seria às 7h55.

Tudo combinado com os guias, chofer do ônibus e com o hotel. Despertei cedo e como o hotel não tinha serviço de despertar eu mesma bati em todas as portas do nosso grupo fazendo esse serviço.

Nessa viagem, o guia que me acompanhava, o sócio-fundador da Pisa, o saudoso Maurício, tinha sérios problemas com horários. Ele sempre chegava atrasado. E por isso, já prevendo qualquer imprevisto, tive um cuidado especial quando bati na porta do quarto dele para me certificar que ele havia acordado. Bati até ele me dizer um bom dia sonolento. Era cedo e ele já havia despertado. Um problema a menos.

Voltei para meu quarto, peguei as minhas coisas, fiz o check-out e levei a mochila para o ônibus que já havia chegado. Tudo sob controle.

No café da manhã, os clientes foram aparecendo. Já estávamos finalizando o café da manhã quando o coordenador perguntou sobre o Maurício. - Verdade, cadê ele? - pensei. Eu não tinha percebido que ele não tinha ainda aparecido para o café. Inventei uma desculpa para o coordenador de que ele já tinha tomado o café mais cedo. 

Corri até o quarto do Maurício e bati na porta. Bati de novo. Silêncio. Tentei abrir a porta. Trancada. Cadê ele?

Fui até a recepção e o grupo já ocupava boa parte dela fazendo o check-out. O coordenador gritava que quem não estivesse no ônibus, até às 7h55, iria ficar.  

Chamei a recepcionista de lado, que já me conhecia de outras viagens, e pedi a chave mestra do hotel. Eu precisava entrar no quarto do Maurício, já que ele não respondia. Devia ter acontecido alguma coisa. Ela me entregou a chave e eu corri novamente para lá.

Bati e nada! Abri a porta e qual não foi a minha surpresa quando o encontrei vestido, usando até boné e botas de caminhada, deitado e roncando embaixo dos cobertores!

Ele despertou assustado depois da chacoalhada que eu lhe dei e o puxei para fora da cama. Quando entendeu o que aconteceu pediu desculpas. - Pode deixar que eu arrumo a sua mochila. Vai tomar o café que vamos sair às 7h55! – eu disse. Ele nem piscou e desapareceu. Soquei todas as coisas dele na mochila e corri para o ônibus, jogando a bagagem no compartimento de carga.

O coordenador que estava na porta do ônibus impaciente me perguntou: - O Maurício perdeu a hora, não? Ele vai ficar. Eu sinto muito. Eu gosto muito dele. É meu amigo. Mas ele vai FICAR se não chegar no horário.

Eu não podia deixar ninguém para trás, muito menos o sócio-fundador da nossa agência! Eu precisava ganhar tempo, então eu disse que na verdade o Maurício estava fazendo o check-out do grupo, mas o hotel não estava deixando o grupo sair já que faltava uma chave que não havia sido devolvida.

Subi no ônibus e disse um número de um quarto aleatório que por sorte o ocupante disse que não se lembrava de ter entregue a chave na recepção. Ufa! Prontamente disse que iria até o quarto checar e já retornaria.

Justamente quando eu retornei para o hotel, o Maurício estava na recepção pronto para sair. Eu lhe contei a história que eu tinha inventado e que o coordenador estava bravo. Ele riu.

O Maurício tinha essa característica, ele conseguia ficar calmo e rir em situações inusitadas: - Fique tranquila, Clau. Eu depois me acerto com o coordenador. Essas coisas acontecem. Obrigado. A viagem vai ser incrível! – e abriu um largo sorriso angelical como se nada tivesse acontecido.

Assim, voltamos ao ônibus e saímos exatamente às 7h55. Ele estava certo. O coordenador logo esqueceu a história e a viagem foi mesmo incrível. E ainda tivemos uma noite com a lua cheia mais bonita que eu vi na Patagônia.

Ops! Barraca errada

Estávamos no Parque Torres del Paine acampando, e as barracas estavam armadas uma ao lado da outras. Eram todas iguais e era bonito vê-las todas alinhadas.

O grupo era pequeno. Eu estava sozinha na barraca da ponta. Ao meu lado, estava um irmão com uma irmã. Ao lado deles, um casal. Ao lado, dois amigos. E na outra barraca, mais dois amigos.

Naquela noite, na barraca do casal, o marido levantou e foi ao banheiro. Acredito que, ouvindo o zíper da barraca vizinha, o irmão deve ter despertado e também foi ao banheiro.

No retorno, o irmão em vez de entrar na barraca da irmã, entrou na barraca do casal.

Quando o marido retornou e viu um homem na barraca ao lado da esposa, foi uma confusão. Gritos, xingamentos. Acordaram quase todo o acampamento.

Depois das explicações dadas, o marido se acalmou um pouco, mas durante o restante da viagem ainda era possível sentir o seu ressentimento. Felizmente, não chegaram a brigar mais sério.

Assim, a dica é: sempre marque bem o local da sua barraca, para evitar entrar na barraca errada.

Grito na noite

Quando fazemos as caminhadas no Paine, dormimos quando anoitece, por volta das 22h. Como estamos exaustos, o acampamento fica em silêncio muito rápido. Assim, quando eu escutei um grito de dor vindo de uma barraca próxima, fiquei imaginando que algum puma havia entrado em alguma barraca. Fato que NUNCA aconteceu já que os pumas não chegam nos acampamentos e NUNCA atacam viajantes. Mas era um grito de dor, eu ainda estava meio dormindo e imaginando coisas.

Assustada, eu fiquei em silêncio tentando entender de onde vinha o som. Eu não queria sair do saco de dormir. Eu já estava quentinha.

Na Patagônia, no verão à noite, as temperaturas dentro da barraca estando sozinha chegam a 9ºC, enquanto que fora da barraca pode chegar a 4ºC. Eu só sairia se fosse do nosso grupo.

- Aiiiii, o meu cabelo!!! - Dei um pulo. Era do nosso grupo.

Sai da barraca. A visão foi surreal. A barraca do fundo em que dormiam duas irmãs havia uma luz girando como em uma balada, dançando com o movimento da barraca. Gemidos e os movimentos de uma luta.

- Para de socar...

Cheguei perto e perguntei se estava tudo bem. Era lógico que não estava, mas o que perguntar nessa hora?

Resumindo, as irmãs se deitaram na barraca com as cabeças alternadas, e quando uma das irmãs abriu o zíper para sair e ir ao banheiro, acidentalmente prendeu e arrancou o cabelo da outra irmã que dormia com a cabeça próxima à porta da barraca. Elas então começaram a gritar uma com a outra, a se chutar e socar. 

No final, com o acampamento já desperto, elas acabaram fazendo as pazes e conseguimos soltar do zíper o cabelo da irmã que havia sido um pouco escalpelada.

Dica: Evite dormir com a cabeça próxima à porta da barraca principalmente se tiver cabelo longo, pois à noite acidentes podem acontecer.

Ladrão peludo

Certa noite, em El Calafate, na Patagônia Argentina, após o jantar eu voltava para o meu hotel, que ficava a umas 8 quadras do centro.

Eu havia comprado uma empanada de carne e ela seria o meu lanche para o passeio no dia seguinte na caminhada sobre o gelo do Glaciar Perito Moreno. A empanada estava em uma sacolinha plástica. Dei um nó e a amarrei ao cinto na minha cintura. Fechei a jaqueta e coloquei as mãos nos bolsos a fim de me proteger do frio. Eu caminhava sozinha.

No caminho eu encontrei um cachorro da raça sheepdog. Na Patagônia, os cães são imensos e peludos. Ele era lindo e brincalhão. Abanava a cauda para lá e para cá. Era tão fofo que eu até pensei em roubar aquele cachorro e trazer para o Brasil.

Mas, qual não foi a minha surpresa quando percebi que o real interesse dele não era eu e sim a minha empanada!

Eu tive que fazer um verdadeiro malabarismo para que ele não abocanhasse a minha empanada. Os sheepdogs são grandes! Maiores que um labrador. Bravamente defendi a minha empanada. Ele mordeu o saquinho, mas ela estava intacta lá dentro. Corri até o hotel e o cão me seguiu. 

Fiquei com pena dele e pedi uns biscoitos na recepção do hotel para dar para o cão, mas quando eu saí ele já tinha ido embora. No dia seguinte, alguns passageiros disseram que viram a cena toda e riram muito.

Nota: Descobri que os cachorros soltos na região de Calafate não são abandonados, eles tem dono. É costume na Patagônia, quando os donos saem de férias, deixarem os cães soltos para que os vizinhos tomem conta deles. Aquele sheepdog em particular vivia perto do hotel e era muito bem cuidado. Conclui então que a minha empanada seria um aperitivo e tirá-la de mim tinha sido a diversão da noite.

Alguma coisa não está cheirando bem

Retornando a Cuzco, em um micro-ônibus, após o nosso grupo ter percorrido a Trilha Inca, bem na altura de Chinchero, um gambá cruzou a nossa frente na estrada e sentimos um cheiro medonho!

Misture suor, chulé, fezes, urina, peixe podre, cebola, alho, carniça, amônia e éter e aumente a potência para 1.000 vezes. É sufocante, asfixiante, lacrimejante e nojento. O cheiro invadiu o ônibus e grudou nas nossas roupas, sapatos e mochilas. Após tossir e chorar por alguns minutos abrimos os vidros e seguimos viagem. 

Desembarcamos em Cuzco fedendo. Após o banho o cheiro melhorou, mas as roupas e mochilas ainda fediam. Descobrimos que o cheiro melhorava com lencinho umedecido.

No dia seguinte, voltaríamos para o Brasil e não tínhamos tempo para lavar as roupas. Então, as colocamos em diversos sacos plásticos no fundo da mala, para poder viajar, e as lavaríamos no Brasil.

No embarque, os cães se afastavam das nossas malas e o nosso grupo foi escolhido para a revista. Quando o oficial da Receita Federal peruana começou a revista, já sentiu o cheiro. 

Comecei a rir. Eu lhe disse que o grupo tinha tido um encontro com um gambá na noite anterior, e nós não tínhamos conseguido lavar as roupas ainda. Ele olhou aterrorizado.

- Todo o grupo? – perguntou. Eu respondi que sim, já que estávamos todos no mesmo ônibus. Ele parou a revista e nos liberou, até nos passou na frente dos outros passageiros acho que com medo de que empesteássemos todo o lugar, pois acho que era o que ia acontecer se ele abrisse os nossos sacos de roupas.

Voltamos para o Brasil e felizmente após alguns dias e lavagens o cheiro saiu. Tenho certeza que o gambá até hoje está rindo de nós.

Toalete Inca

Segundo dia de Trilha Inca no Peru, uma das clientes me avisou que estava com muitas cólicas, pois havia comido muita pizza antes da trilha, e mesmo tendo sido avisada sobre eventuais problemas gastrointestinais ela tinha se arriscado e agora estava arcando com as consequências. Nada grave, apenas um pouco desconfortável para ela.

Como poderíamos ter que fazer diversas paradas no caminho, eu combinei com o guia local para que ele fosse à frente com o grupo, enquanto eu ficava no final da trilha com a cliente, esperando por ela enquanto ela ia ao “toalete”.

A Trilha Inca Clássica é linda, e como a Trilha Curta (1 dia), a de Salkantay e de Choquequirao, guarda bastante mata nativa e em todo o trajeto as paisagens são fantásticas e é até difícil dizer qual a mais bonita.

Não há bichos peçonhentos na trilha, mas quando ouvi ela gritar o meu nome, eu logo pensei em algo do tipo.

Quando eu cheguei no local onde ela estava, qual não foi a minha surpresa quando a encontrei agachada sem calças com o rosto vermelho:

- Meu papel higiênico... – e indicou – Ele rolou montanha abaixo...

A cena era surreal, aos meus pés havia uma trilha fina de papel higiênico desenrolado que seguia montanha abaixo. Quanto mais ela puxava a ponta, mais ele rolava. Eu não sabia se ria ou ficava séria.

Desci a encosta e peguei o rolo que, por sorte, não havia caído no rio.

Voltei para o local onde ela se encontrava agachada como uma gatinha com grandes olhos verdes e bochechas vermelhas e lhe entreguei o que havia sobrado do rolo. Ela me contou que havia colocado o rolo de papel sobre um saco plástico e ele havia rolado a montanha

Agradeceu, super envergonhada, e ambas começamos a gargalhar.

Fica a dica: quando for ao toalete natural e levar um rolo de papel higiênico amasse-o para que ele não role a montanha, senão se não tiver ninguém por perto terá que usar as folhas. 

Belo Inca

Eu estava guiando um grupo no Peru durante a Festa do Sol (Inti Raymi), que reúne pessoas de todas as regiões do Peru e mais os turistas.

Ela é um resgate de tradições incas, com a recriação dos rituais que aconteciam anualmente no Império com a finalidade de homenagear o Deus Sol e o “amarrá-lo” para ele não ir embora, já que coincidia com a data do solstício de inverno.

Os rituais dividiam-se em 3 partes. O grupo estava reunido na Praça de Armas e assistindo à comemoração e eu e o guia local Jim estávamos cuidando muito bem do grupo. É uma festa cuja logística é bem complicada, pois há muita gente e muito deslocamento.

No final desse ritual, reunimos o grupo e fomos ao ônibus para o grande fechamento e ritual em Sacsayhuaman.

Chegamos no ônibus e quando fiz a contagem faltava uma mulher. Ficamos preocupados. Procuramos nas imediações e nada. Deixei o guia local com o grupo e voltei ao hotel e ela também não estava lá. Deixei uma mensagem e voltei para o ônibus na esperança de que ela estivesse lá. Nada.

Tivemos que seguir para a ruína já que o grupo não podia se atrasar para o ritual.

Na ruína de Sacsayhuaman, há uma arquibancada e um palco onde o Inca e os representantes das 4 regiões incas se encontrariam, todos com vestimentas típicas e levando alimentos cultivados nas 4 estações. O Inca vem carregado desde a Praça de Armas e é levado até o palco. Nossos lugares eram bem em frente. Lugares ótimos.

Eu fiquei na porta, na esperança de que a mulher aparecesse quando percebesse que havia se perdido de nós.

E finalmente ela apareceu dançando e muito feliz. Perguntei-lhe o que havia acontecido e ela me respondeu sorrindo:

- Você achou mesmo que eu ia entrar no ônibus e deixar de seguir aquele homem lindo? Ele me deu até o braço!!!

Passado o susto e assistindo o ritual em nossos lugares na arquibancada, concordo que a concorrência foi desleal. Pois ao contrário dos anos anteriores, em que o Inca era um senhor idoso, esse ano, o Inca era muito bonito. Digno de um Deus.

Ri muito. Apesar do susto que eu e o guia local passamos por ter perdido a cliente, ela havia conseguido vivenciar uma travessura peruana. No final, não houve maiores problemas, mas caso você queira viver uma travessura e fugir do grupo, por favor, avise seu guia. 

Cinzas no vulcão

No Deserto de Atacama, há diversas caminhadas, mas uma delas é muito impactante, pois para conseguirmos chegar no alto dessa montanha, temos que fazer uma aclimatação de 5 dias. Atingimos um cume de 5.540m.

A caminhada é lenta e a falta de oxigênio está presente em todo o caminho. Tudo tem que ser muito bem coordenado para que tenhamos êxito em levar todo o grupo até o destino.

A recompensa é uma das paisagens mais bonitas da região onde avistamos os vulcões Licancabur, Ouriques, as lagunas Verde e Branca na Bolívia, e todas as montanhas no entorno, além de chegarmos em um cume com 5.540m que é mais alto que o campo-base do Everest. Nossa história se passa no alto desse antigo vulcão: Cerro Toco.

Após o grupo chegar no cume, tiramos fotos e todos estavam muito felizes. Alguns choraram após o esforço, falta de ar e pelo frio. Geralmente ficamos no local cerca de 15 minutos e descemos rápido para fugir do frio e da hipotermia já que a temperatura no cume é de pelo menos -10ºC.

Uma cliente me alcançou já no início da descida e disse que precisava espalhar as cinzas do seu pai que tinha levado na viagem e exibiu um saco plástico cheio de cinzas.

Ela estava muito emocionada e não tivemos tempo de dizer nada. Ela, em uma fração de segundos, abriu o saco e atirou as cinzas no ar.

A situação pareceu uma cena de um programa humorístico. 

Ela não checou a direção do vento e todas as cinzas do pai dela, ao invés de serem levadas pelo vento, voltaram e cobriram no nosso grupo. 

Ficamos cobertos dos pés à cabeça e até alguns chegaram a engolir um pouco das cinzas.

No final da história, brincamos que o pai dela tinha gostado tanto de viajar com o grupo que essa tinha sido a sua forma de se despedir de todos com seu “toque” especial.

Dica: Antes de espalhar as cinzas de algum ente querido, verifique a direção do vento e não o faça a 5.540m de altura sob a influência de ar rarefeito, senão você poderá voltar com as cinzas de volta para casa na roupa ou cabelos.

Sapo quando cai é sinal de chuva

Era minha primeira guiada no Peru com Trilha Inca (1998).

Um guia local muito experiente nos acompanharia e eu já o conhecia e tinha viajado com ele. O grupo era pequeno, e como tínhamos nos entrosado bem nos primeiros dias de aclimatação, tudo seria tranquilo, mas eu estava apreensiva.

Os dias de trilha transcorreram tranquilamente, e finalmente faríamos a caminhada final para entrar em Machu Picchu.

Perto de Winawayna, há um caminho de areia em zigue-zague e pedi para que todos déssemos um espaço entre nós, pois como era um areião, subia muito pó. 

Eu e uma passageira fomos na frente, e no final da trilha de areia havia um posto de controle e uma pequena vila. Ficamos ali esperando o grupo. No caminho eu havia visto um carregador sentado e não dei importância.

Os participantes do grupo, um a um, foram chegando aos poucos e o último chegou carregando um saco de carregador. Perguntei o que havia acontecido e ele disse que estava ajudando um carregador que havia caído. Logo me lembrei daquele carregador. O cliente havia dito que ele não estava bem.

Chamei o guia local e perguntei o que tinha acontecido. Ele disse que quando eles passaram, o carregador estava no chão e as pessoas que passavam jogavam água nele.

Eu fiquei furiosa, porque eu não parei quando passei? Não era um carregador da nossa equipe, mas era uma pessoa.

Fui até o posto de controle e fiz o guarda me acompanhar. O guia local também foi comigo e voltamos à trilha.

O carregador estava no chão com os olhos fechados e respirava com dificuldade, e as pessoas que passavam não ajudavam e continuavam a jogar água nele.

Eu pedi para o guarda do posto de controle chamar o socorro e ele disse que “quando sapo caía era sinal de chuva”, se referindo ao carregador como “sapo”. E que não era para eu me importar, pois ele só devia estar bêbado.

Eu não me conformei, fiz uma confusão até conseguir um plástico grosso, e eu, o guia local, o assistente do guia e um cliente carregamos o carregador até o posto de controle. O grupo formou um círculo ao redor dele como que protegendo.

Uma das clientes do grupo se aproximou e disse que ele estava convulsionando e colocou a cabeça dele em seu colo. Os gemidos pararam e ele ficou mais estável. Ela balançou o corpo para frente e para trás e passou as mãos em seus cabelos como que o embalando começou a entoar um canto de ninar.

Ouvindo aquele canto o corpo relaxou, sorriu, ficou em silêncio, e quando achamos que ele ia melhorar e abrir os olhos, ele parou de respirar. Demoramos alguns minutos para entender que ele havia morrido. Foi chocante. O guarda do posto de controle disse que cuidaria do corpo e que não podíamos fazer mais nada.

E de fato não podíamos mesmo, já estávamos há mais de 2 horas de caminhada de Machu Picchu, não havia posto médico, enfermaria e nem onde pousar um helicóptero. Reuni o grupo e demos as mãos. Fizemos uma prece pela alma dele que havia escolhido partir amparada pelo nosso grupo. Choramos e nos abraçamos.

A caminhada até Machu Picchu foi silenciosa. Chegamos mais tarde do que o previsto, era quase na hora de fechar e a cidade estava vazia.

Bem no alto da montanha, uma grande lhama sentada parecia estar esperando por nós. Com receio, nos aproximamos, mas ela deixou que tirássemos diversas fotos, como se agradecesse a ajuda que tínhamos prestado ao companheiro de trilha.

Voltei naquele local no ano seguinte e deixei algumas flores em homenagem àquele carregador e a todos os outros que, silenciosamente, percorrem aquele caminho todos os anos. Ser carregador é um dos serviços que dá uma das melhores rendas e pode alimentar uma família por um ano. Assim, banir o serviço sem dar opções para esses trabalhadores é condená-los à fome. Hoje existem limites de carga, exames obrigatórios, postos de controle para regulamentar a profissão.  

Passawanquei (“boa trilha irmão”... saudação quéchua). Final de trilha, seu destino não era Machu Picchu, e sim ficar nas montanhas. Um rosto sem nome, mas não abandonado. A vida não quis que seu espírito deixasse a montanha dos seus antepassados. Não pudemos fazer nada a não ser acalentá-lo. Ele não estava sozinho. 

Descanse em paz, Carregador. Para sempre nos lembraremos da sua bravura, do seu sorriso e do olhar risonho que ainda ostentava e que deve ter sido seu companheiro em toda a vida. Adeus companheiro de trilha, até a próxima.

Por Cláudia Ribeiro.

Você que já viajou com a Pisa Trekking, obrigado por ajudar a construir esta história. Você que ainda não viajou, venha fazer parte da nossa família. Encontre aqui uma viagem para você, tire suas dúvidas com nossos atendentes e seja bem-vindo!

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